O tempo que tenho e o tempo que me tem




Uma pessoa pode decidir viver o seu dia cumprindo objetivos. Realizando suas tarefas, usufruindo da alegria de existir e quem sabe chegar vivo ao final do dia. Nesse meio tempo, conheceu pessoas, conversou com elas, aprendeu algumas ou muitas coisas, se arrependeu de algumas e deitou na sua cama com a sensação que o dia foi produtivo e que o amanhã é promissor. Amanhã será um novo dia para realizar tudo de novo, com espaço para algumas variáveis. Sua agenda parece bem organizada e a ideia de ter uma agenda de alguma forma a faz acreditar que seu tempo é bem vivido, afinal o controle do tempo é para poucos. Talvez para aqueles que planejam, que sabem cultivar ferramentas de produtividade com maestria. E assim o tempo foi colocado no seu lugar, de bom servo, silencioso. Quanto mais controle alcançamos, mais alimentamos a falsa ideia de que estamos controlando algo de fato. 


Então acreditamos que gastar tempo com qualidade nos redime de uma vida onde não compreendemos o tempo. Ele apenas existe, ele passa, ele sopra. O tempo não espera por ninguém é o que dizem. Isso soa cruel e demasiadamente insensato. Porque esperar é tudo o que o tempo faz. Ele espera ser vivido. Vivido e não controlado. Meu ponto aqui não se refere ao tempo do seu relógio, apesar dessa ser uma boa ilustração de controle do tempo, mas nesse lugar me refiro ao tempo fora do alcance dos nossos olhos. Aquele que sentimos, porém, não medimos, apenas sabemos, ele existe. Esse tempo valioso é contado por mais do que rugas e dores nas articulações, esse tempo está em como seu coração bate, e como o mundo ao seu redor reverbera. Esse é o envelhecimento do aprendizado, ele vem das dores vividas e compreendidas, vem do homem transformado e refeito. Ele deixa marcas mais profundas que olhos podem contemplar e se mistura com outros nomes, como a sabedoria e a paciência. Causa estranheza para os que ignoram sua existência e atrai os que suspeitavam e o buscavam como uma resposta iluminada. Nele convergem os acontecimentos e escolhas, lugares certos, palavras certas, a coincidência inesperada. Algo em nós procura um nome para essas coisas, e deseja um controle mínimo para as surpresas não causarem um estrago maior. Um plano. 


O controle nos serve como uma falsa âncora, inútil numa tempestade, parece, mas não é. Perece, mas não serve. Reconheço que essa falsa âncora não é nada além de mim mesma e minha desesperada busca em controlar tudo. Se eu começar a me preparar emocionalmente, pelo menos posso conter os danos de uma possível mudança aqui ou ali, mas isso não muda muita coisa na prática, pois tudo continuará seguindo o roteiro de acontecimentos. Perder o controle não é uma coisa prazerosa, pelo menos para mim. Me causa inquietação e às vezes profundo desconforto. Num filme que gosto demais, A Vida Secreta de Walter Mitty, conta a história de um homem previsível, vivendo uma vida sem graça, até que o mundo ao redor revela a realidade da mente do Walter Mitty. Quando ele perde o controle a história se torna muito engraçada e criativa, mas por fora ele não inspirava nada diferente, parecia mais um homem numa multidão de anônimos. A mente dele vem à superfície e alguém novo nasce nessa história. Mitty não fez isso para se encaixar numa esfera ou pertencer à algo, ele apenas deixou que o homem que ele foi feito para ser viesse à superfície. 


Nesse papel de viver a vida parece que somos empurrados para agir e viver para pertencer, para sermos reconhecidos por algo, você precisa ser bom em algo, pelo menos em uma coisa. Ninguém te ensinou isso nos livros da escola, foram seus amigos no recreio enquanto contavam o que haviam feito no final de semana, foram seus pais reconhecendo ou não seu esforço em fazer algo, foram estrelinhas na sua testa e um tapinha nas costas. Foram esses breves ou memoráveis reconhecimentos, ou a falta deles, que foram lentamente moldando quem você é, e o que talvez deveria fazer, para enfim fazer um bom proveito do seu tempo. Sim, voltamos com ele. Pois nesse processo ele foi sendo consumido e não vivido. Gasto e não apreciado, e como bem sabemos o tempo não volta, mesmo que você tenha em algum momento imaginado aquele enorme "E se…". Mas logo descobrimos que esse pensamento talvez venha da incompreensão do valioso aprendizado do tempo que não pode voltar e das marcas que ele deixou. 


Na reflexão sobre o descanso percebi como o tempo mudou. Nem longo, nem curto, mas exato, necessário. O tempo cumpriu seu papel com perfeição, e parte dele era ser percebido. Compreender e receber com gratidão. Agora, o meu controle mostra o que realmente é: a insensatez com uma roupagem produtiva. E que bom reconhecer isso, pois agora eu posso saber com o que realmente estou lidando. Talvez a sabedoria tenha ficado de lado nos momentos que escolho ter tanto controle, pois nessa tentativa fadada ao fracasso, eu perco a rica oportunidade de conhecer o rosto do tempo, os efeitos da espera. E perder essa chance coloca o restante em xeque, pois seria como aceitar apenas parte do processo. Tempo vivido, mas não aprendido se torna tempo desperdiçado, pois até a espera tem grande valor. 



Fotos: Pedro Dias



Agora compreendo que o tempo de espera não é apenas um grande parêntese na linha da vida. O tempo que eu espero é o tempo que eu conheço, ele é um tempo que eu aprendo. Ele abre espaço para mergulhar e abre espaço para curar. Para sarar. Sem tempo, o corpo ferido caminha deixando um rastro de sangue. Mas o tempo vivido, como é necessário, permite que o corpo seja renovado, nutrido e mesmo que deixe cicatrizes, ainda assim, com o tempo, elas são vistas como ornamentos, com a sutil beleza adicionada ao design original. Quem eu sou está acontecendo nesse tempo, quem eu sou está vindo à superfície nesse tempo, quem eu sou está se tornando nesse tempo. Dê tempo para se tornar, pois sem ele talvez você passe e não se conheça, talvez passe e não se perceba. Não, não tenha medo do tempo e nem medo de conhecê-lo. Não tenha medo de esperar o que é necessário, pois talvez… talvez, a sua vontade de controlar a espera te roube de viver o que só com o tempo poderia existir. Como deve ser


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